Era uma vez uma pedra

Era uma vez uma pedra e debaixo dela nada.

Mas o homem que era só homem
correu a sentar-se a seu lado
(não nela, que era pedra sem nada por cima ou baixo dela)
e a pedra que já só não era
passou a “pedra do namorado”

(o homem não era, nem a pedra o queria saber: era uma pedra, apenas só.
De nada lhes interessavam as tangentes e as paralelas, as rotações e as translações.
Ele um homem, ela uma pedra: sem metáforas ou anáforas, metafísicas ou segredos.
Um e outro, só.)

Era uma vez um homem que vendia sonhos:
parou junto à pedra
falou com o homem
deixou uma caixa
fugiu numa nuvem.
O homem da pedra (que não era dele nem ele dela)
fitou a nuvem,
empurrou a caixa
e aguardou por aquilo que não sabia o que era.
Ele, o homem, a história incompleta.
O desejo do que não sabia,
o querer estar onde não estava,
de experimentar o que não conhecia.
Parado, à espera.
Uma pedra ao lado da pedra,
sem nada por cima ou baixo dela.

O tempo passou.
O homem morreu.
A pedra ficou.

Ao ladro da pedra, ossos.
Lembrança sem memória
do desejo do que não soube
do não estar onde queria ter estado
do não viver o que queria ter conhecido.
O homem que vendia sonhos regressou:
parou junto à pedra,
fitou os ossos
fechou-os na caixa
e deixou a nuvem.

O tempo passou.

Era uma vez uma pedra e debaixo dela nada. Ao lado, a nuvem.
Uma criança parou:
abraçou a nuvem
pintou a pedra
cresceu as asas
voou o mundo
e fez-se homem.
Depois voltou,
levou a pedra,
construiu um palácio
e criou família.

O tempo passou.

Era uma vez uma pedra e debaixo dela nada.
Mas, nela,
Foi aqui que comecei o caminho que um dia fiz”.

Do homem que era só homem
nem ossos nem memória;
do homem que vendia sonhos,
nem lembrança ou recordação;
do menino que se fez homem,
nas ruas e nas vielas,
conta-se hoje a pedra, o palácio,
a parentela.

Era uma vez uma pedra
e dentro dela tudo.